quinta-feira, 26 de março de 2009

A hora sagrada das refeições


- Como você não vai comer alface?
- Não vou e pronto! Não quero alface.
- Está cada vez mais difícil de se fazer comida nessa casa! Onde já se viu não comer alface! Faz tão bem! Eu tenho saudades de quando vocês eram pequenos e comiam de tudo. E eu que achava que eram as mães que não ensinavam os filhos a comerem direito...
- Tem razão a mãe de vocês. Lúcia, eu já falei, quem não gosta não come, não tem essa de fazer comida diferente! Olhem aqui, crianças, eu como alface, estão vendo só?
- Mas não toma sopa de legumes, o que dá no mesmo! A mamãe nunca faz sopa de legumes quando você está em casa, já alface tem todo dia!
- Uma coisa não tem nada a ver com a outra! Sopa de legumes me ataca o fígado.
- E pimentão recheado com brócolis?
- Aumenta o meu colesterol!
Pai e filho mais velho discutindo, a mãe se entupindo de alface para não desperdiçar, a filha do meio resolveu se posicionar:
- Pior de tudo quando tem peixe e eu tenho que suportar aquele cheiro horrível! Bife, então, nem se fala!
- Só porque você é vegetariana você acha que todo mundo tem que jantar cenoura com beterraba? - retrucou o irmão.
- Carne faz mal, além de que, imagine o animal morrendo, a carne dele sangrando... Que nojo! As tripas do animal, o intestino...
O filho mais velho correu para o banheiro para vomitar o bife que estava mastigando. A mãe advertiu a filha do meio que aquelas coisas não se diziam durante as refeições, enquanto o pai engolia o bife para não dar o braço a torcer.
A mãe prosseguiu com o discurso do alface, que agora incluía pepinos e tomates.
O pai, de boca cheia, resmungou qualquer coisa sobre o regime da filha e o filho resolveu fazer um sanduíche (só com queijo).
A discussão continuou porque a filha não queria repetir o arroz com lentilha - justo lentilha, que tem tanto ferro e era tão importante para ela porque já não comia carne.
Em meio a tanta discussão, a mãe falara que não ia mais fazer comida, já que ninguém comia mesmo, e assim poderia assistir a novela das sete, que sempre quis ver mas nunca pôde, já que estava sempre atarefada na cozinha neste horário.
O pai reclamou que ela gastou um dinheirão no curso de culinária e ele não podia comer porcarias por causa do fígado sensível.
A filha do meio levantou-se dizendo que a chamassem na hora de lavar a louça, enquanto o filho mais velho recusou também a salada de frutas.
O pai disse que trabalhava o dia todo e na hora de reunir a família para uma refeição era isso que acontecia. E ainda completou:
- No meu tempo não era assim! Nós inclusive fazíamos uma oração em agradecimento ao alimento que estava na mesa. Mas hoje em dia ninguém mais dá valor a nada mesmo! Nem à comida, nem à família...
A mãe estava a ponto de meter a cabeça no forno ou fazer mal uso da faca, mas ainda restava uma folha de alface em seu prato.
A única pessoa que permanecia inalterável em meio aquele escândalo - sim, porque agora a mãe chorava culpando-se por não saber fazer bobó de camarão - era a filha mais nova, feliz da vida por ninguém ter ainda percebido que estava comendo lentilha com catchup.

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