sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Só porque hoje é SEXTA-FEIRA...


... Resolvi publicar uma historinha que acontece em uma sexta-feira.

Ela foi escrita no ano passado (em uma sexta-feira? Não lembro!), em parceria com meu amigo RICARDO LUGÓ (que por acaso também fez a revisão do texto).

Pedi autorização para publicá-la aqui... E a mesma me foi concedida.

Para acabar a semana então... Uma historinha escrita a quatro mãos!

Bom final de semana a todos!


A Missão de Lucélia

Lucélia achava que os relógios estavam em greve. Na verdade, ela não era do tipo de pessoa que costumava pensar nessas coisas. Pensava em coisas mais práticas, como o preço do feijão e o horário da missa. Mas era sexta-feira à tarde e a cada vez que olhava no relógio, os minutos pareciam estar andando para trás.

Tudo o que ela queria era que chegasse às 18h e fosse declarada a sua liberdade. Esse era o seu horário preferido do dia, durante a semana. Aos domingos, seu horário preferido era às 10h, horário da Santa Missa.

Trabalhar, para ela, era um tormento. Às vezes, pensava que morrer de fome seria menos deprimente do que acordar às 6h da matina todos os dias e suportar infinitas 8h de labuta diárias, de segunda a sexta.

Tudo o que ela mais queria no mundo era arrumar um marido que estivesse em uma situação confortável, capaz de sustentá-la, a ela e aos seus futuros filhos, com dignidade. Mas passavam-se os dias, os meses, os anos... E nada de aparecer um bom marido para Lucélia. Era um tal de Santo Antônio virado de ponta cabeça, orações, promessas, novenas... E nada.

Todas as suas irmãs, primas e amigas já haviam casado, exceto Lucélia. Outras pessoas, no lugar de Lucélia, podiam estar razoavelmente satisfeitas com o trabalho. Mas ela, não. Trabalhar como recepcionista em uma grande empresa era, para ela, grande tormento.
Foi aí que aconteceu o inusitado.

- Ei, você!

Lucélia perdeu a cor, as pernas tremeram. Estava sozinha, de onde viera essa voz?

- Ei, você! Sou eu, o ponteiro do relógio.

A vista ameaçou turvar, um calor subiu da base do estômago, provocou uma fisgada no peito e terminou num bololô na garganta.

- É o seguinte, posso andar mais rápido, se você quiser. Mas tenho exigências a fazer.

Lucélia contemplava o relógio, perplexa. Ela, que já o tinha olhado mais de cem vezes naquela tarde, olhares de súplicas para que andasse mais rapidamente, agora trazia no rosto um ar pasmado, como se estivesse diante de alma penada.

- Posso andar três minutos como se fossem um. Ou até quatro. Mas, se você não atender ao meu pedido, eu estanco. Paro aqui mesmo. Você ficará anos, décadas trancafiada aqui dentro, esperando o fim do expediente que nunca acabará.

Lucélia fez um contido gesto de consentimento com a cabeça.

- Tá vendo aquele calendário do outro lado da sala? Pois é, eu preciso que você leve um recado pra ele.

Lucélia não podia acreditar no que estava ouvindo! Não lhe bastava o Dr. Orival, seu chefe, lhe dar ordens... Não lhe bastava o escritório inteiro lhe dando ordens, agora até o relógio? Ah, isso era demais. "É o fim dos tempos, o fim dos tempos!", pensou.

No que o relógio repetiu:

- É pegar ou largar.

Lucélia não era do tipo de pessoa que conversava com relógios. Nem com relógios, nem com animais de estimação, nada disso. Era prática, realista. E, sendo assim, pensou: " Se o meu destino está nas mãos desta porcaria de relógio de parede... Que saída?".

- Pois sim, diga o que quer - disse Lucélia, não sem se achar louca por estar conversando com o relógio.

- O meu amigo ali, calendário, há dias não fala comigo. Tivemos um atrito. Estávamos fora de compasso e acabamos discutindo. Talvez por isso você esteja percebendo que a passagem do tempo esteja meio instável.

- Ah, sim, sim, percebi - respondeu Lucélia, lembrando do quanto o tempo costumava demorar para passar enquanto estava no trabalho e o quanto o tempo passava depressa nos finais de semana, quando, além dos seus afazeres normais, ainda tinha que procurar um pretendente.

- Então, tenho um plano - completou o relógio - você dará um recado ao meu amigo calendário, fazendo com que reatemos a amizade. Em troca, posso fazer os tais quatro minutos em um, conforme lhe prometi.

- Cinco em um ou nada feito - rebateu Lucélia, acostumada a barganhar os preços na feira.

- Ok, cinco em um - concordou o relógio.

Lucélia inclinou-se ligeiramente para frente e apoiou o queixo sobre a mesa, ficando a poucos centímetros do relógio, para ouvir a mensagem que teria de levar ao calendário. Por alguns segundos, ouviu-se apenas o tique-taque pela sala, até que o relógio pigarreou e disse com ar solene:

- Nascemos juntos. Os minutos, as horas, os dias, os meses, os anos - a recepcionista embicou levemente uma das sobrancelhas para cima, intrigada com o raciocínio que começava a se desenhar - de uns tempos pra cá, perdemos o compasso. Todo mundo diz que o tempo voa, mas que as horas não passam. Lucélia bufou e pôs-se novamente com a coluna ereta na cadeira. Não arranjava posição.

- Não aguento levar a culpa sozinho. Não é possível que as pessoas passem os dias dizendo que as horas não passam, mas em dezembro falem que o ano passou como uma flecha. Isso é desagradável. Entende?

- E?

- O calendário vai ter de assumir uma posição. Somos uma família. Estamos no mesmo barco. Ele precisa dizer publicamente que a culpa também é dele.

Lucélia soltou a um "Ah!" com irritação, um "Ah, só me faltava essa!". Estalou com a boca, coçou a cabeça, revelava -se impaciente. Longo suspiro.

- Então, me ajuda?

- Se não há remédio... Mas como posso fazer isso?

- Lucélia, convivemos aqui, nessa recepção, há muito tempo. Uns quatro anos, pelo menos. Sabe quantas voltas os meus ponteiros já deram a te observar? Se contasse, você nem acreditaria. Pois então, eu sei que você é uma pessoa religiosa, de bom coração, que acredita na harmonia do mundo e na paz eterna. Assim, não será difícil que o convença a admitir a sua culpa e que aceite conversar comigo para que entremos em compasso.

- Bom, isso é verdade. O padre ficaria orgulhoso de mim se conseguisse reatar essa amizade, ainda que seja entre um relógio e um calendário.

- Além do mais, Lucélia, ainda estamos em março. Esse calendário está aí há apenas três meses. E você e eu temos uma convivência maior, de quatro anos. No ano que vem, se Deus quiser, estaremos aqui, eu e você, você e eu, na companhia de outro calendário.

- Ok, ok, não precisa me chantagear. Eu já disse que vou fazer o que você quer. Agora, se Deus quiser mesmo, no ano que vem estarei bem longe daqui!

Foi quando Lucélia ouviu outra voz.

- Oh, dona Lucélia! Estou há horas tentando ligar na recepção e nada de você me atender! O que está havendo, mulher de Deus? Está com a cabeça na lua, é? Pois saiba que, apesar de ser sexta- feira, ainda não é final de semana.

- Sim, sim senhor, Dr. Orival.

- Eu estava ligando para avisar que não me passe mais ligações por hoje. Preciso terminar um relatório e com esse telefone tocando o tempo todo, fica impossível.

- Sim senhor, Dr. Orival.

- Diga que estou em reunião e anote os recados que eu retorno depois.

- Sim senhor, Dr. Orival.

Lucélia contemplou o ambiente ao seu redor. Ainda era capaz de lembrar a primeira vez em que havia entrado lá, em busca de um emprego. Lembrava-se com detalhes da entrevista e até mesmo da roupa que vestia. Há quatro anos atrás, o seu projeto de vida já era arrumar um marido e poder se realizar como dona-de-casa, cuidando dos filhos, das compras, fazendo bolos deliciosos, de milho, de laranja, de fubá...

Às vezes, Lucélia se questionava por que seria essa a sua cruz: não encontrar um marido decente, enquanto todas as outras pessoas pareciam tê-lo conseguido. Por que Deus a testava todos os dias, em um emprego como aquele, em que todos ao seu redor eram jovens demais, ou comprometidos, ou nada religiosos?

O seu trabalho era atender ao telefone, sorrir para as peruas de relógios dourados que passavam pela recepção e perguntar aos que lá aguardavam se aceitavam uma água ou um café. Isso dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano. Não lhe eram dadas oportunidades para improvisar. Ao atender o telefone, sua fala deveria ser sempre a mesma: "Ambigman, Lucélia, bom-dia".

Ali, desde o primeiro instante, percebeu que não arrumaria o marido dos sonhos. Se ela queria casar, lhe restariam apenas os finais de semana para lutar por este sonho.

Assim que Dr. Orival bateu a porta, Lucélia dirigiu-se ao calendário com o objetivo de desempenhar a tarefa diplomática para a qual tinha sido incumbida.

- Preciso falar com você muito seriamente.

- Já sei, mais uma que vai me escarafunchar em busca de pontes e feriados.

- Vim a pedido do relógio.

- Avise a ele que relógio não tem feriados, nem adianta procurar.

- Não é isso, ele está cansado de levar a culpa sozinho.

- Seja mais clara, não tenho tempo a perder.

- Este é o ponto. A queixa dele é que vocês estão em descompasso. Enquanto todos se queixam que as horas não passam, em dezembro essas mesmas pessoas vão dizer pasmadas que o ano passou como um foguete.

O calendário divertiu-se com a explicação de Lucélia.

- Pois diga a ele que as coisas ficarão como estão. Tenho prazer em ver as pessoas assustadas com a velocidade do tempo, com o fato de não conseguirem fazer as coisas com as quais sonhavam, com olhares suplicantes para as minhas páginas, implorando para que eu passe mais devagar, que assim não se consegue dar conta de todos os afazeres. E eu ali, impávido, pendurado no alto da parede, olhando todos de cima para baixo, imponente e inclemente. Sou como os políticos, gosto do poder. Diga ao relógio que ele terá de continuar aturando os resmungos, as pragas que lhe são lançadas, as batidas nas costas para andar mais depressa.

- Não tem negociação?

- Não, sem choro nem vela.

Lucélia, apática, duramente golpeada com o infortúnio de sua primeira atuação diplomática, retornou ao seu posto de trabalho arrastando os pés. Pigarreou, tentou escolher melhor as palavras, mas como elas não lhe socorreram naquele momento de apuro, disparou a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

- Pois é, o seu destino é como o meu, arrastar-se.

- O que você disse?

- Nada feito. O calendário disse que cada um com os seus problemas. Se você sofre assim, procure um analista. Disse que nasceu para ser temido, enquanto você nasceu para ser odiado.

- Mas que belo filho de uma puta que ele me saiu!

- Escute aqui! Sou uma senhora cheia de relatórios para digitar. Não estou aqui para ouvir linguagem de vestiário masculino.

Possesso, o relógio começou a dirigir impropérios ao calendário.

- Oh, almofadinha de merda! Pensa que só você pode botar banca por aí enquanto eu aqui que me estrepo! Pois isso não vai ficar assim, não. Acabo com a tua raça e acabo com tudo mais!

- Quieto, menino! O Dr. Orival está na sala ao lado, se ouvir essa algazarra aqui bota a todos nós no olho da rua!

- Pois bem, Lucélia, é rapidez que você quer, não é? Então, é isso que todos vão ter. Ô calendário filho de uma grande puta, quero ver você acompanhar o ritmo na virada das folhas agora!

O relógio soltou um ronco, estrebuchou-se todo e colocou os ponteiros a se movimentar com uma velocidade assustadora. Segundos, minutos, horas e dias passaram como em um estalar de dedos.

Lucélia, atônita, viu brotarem manchas senis em seus braços. Rugas tomaram-lhe o rosto, surgiram os cabelos brancos e uma corcova que lhe impedia de prosseguir ereta na cadeira, os olhos enxergavam menos e menos, os dentes amoleceram, as articulações ficaram doloridas, um acesso de tosse rouca surgiu indomável dos pulmões, tudo em Lucélia envelhecia vertiginosamente, em questão de segundos, como um filme no videocassete que tinha a velocidade acelerada pra frente.

Só não mudou o escritório. A mesa, as cadeiras, os arquivos, a papelada em cima da mesa, a atmosfera levemente poeirenta.

O relógio prosseguia furiosíssimo em sua jornada em direção ao futuro. Folhas e mais folhas de um interminável calendário desabavam no chão.

Lucélia curvou-se mais e mais. Soltou um gemido, arregalou e fechou os olhos rapidamente e desabou, sem chance de dar última palavra, morta sobre a agenda de compromissos do Dr. Orival.

4 comentários:

  1. Já que eu senti posso fazê-lo dessa foram, PUTA QUE PARIU. Sensacional. Deus (quem quer que seja isso) lhe abençoe por este texto. Sensacional.
    Pode ser que seja por estar bêbado, mas eu amei. Quem sabe, se eu não perdesse meu tempo com bebida, cigarros, Bon Iver, Bright Eyes, Chet Baker, desilusões amorosas e pessoas que não me querem, encontrasse paz pra escrever textos assim.

    Sério, do fundo do coração, do caralho.

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  2. Ow... seu outro eu às vezes confunde o meu simples "eu"...
    Mas definitivamente é muito bom!!!
    Bjao!!!
    Ahhhh.. Nossa estratégia de marketing começou a ser implantada!!!! He he he!!!

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  3. A Perua de relógio dourado foi inspirado na DaniellEEE??? kkkk

    Achei a cara dela....

    Beijos =)
    Picci

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  4. Terê... vc disse que todos os seus textos eram ficção... certo??!!1
    Tenta explicar melhor... pq algun leitores do seu BLOG estão um pouco confusos.... he he he!!!
    Bjinhos!!!

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